"ContaCorrente"
- Ana Branco

- 28 de jan. de 2024
- 1 min de leitura
«29 –Setembro (quarta). A Regina diz-me:
– A porta da rua não abre e não fecha. A chave ficou mesmo lá fora. Vê se vais chamar o ferreiro.
Monto na bicicleta, vou chamar o ferreiro. Mas o ferreiro não está, a mulher diz-me que só virá ao fim da tarde. E agora? Tinha de ir amanhã a Lisboa, não podemos sair pela porta da cozinha e deixar a casa ao apetite dos ladrões. Retomo a bicicleta, vim reconsiderando pelo caminho. Não se imagina o conflito permanente entre as urgências miúdas de uma casa e as altas especulações de um intelectual. É uma lâmpada que se fundiu, uma ficha que não dá ligação, um fecho que se emperrou ou se partiu, uma cadeira que se desengonçou, um aparelho que se desarranjou, o gás da botija que se acabou, o autoclismo que não funciona, e por aí adiante. Desta vez foi a chave. O fecho é triplo e portanto complicado, a porta é de correr. E aqui está como uma porcaria de serralheiro me encravou um sistema do universo que se calhar eu estava a ponto de descobrir. Descobre-se mais tarde? – não descobre. Estas coisas têm qualquer coisa de uma conjugação de astros. Passa o momento e agora, se calhar, só daqui a milénios. Grandes descobertas ou grandes especulações não tiveram oportunidade com certeza porque encravou alguma chave na fechadura»
Vergílio Ferreira, poeta e escritor nasceu a 28 de Janeiro de 1916, na aldeia de Melo, concelho de Gouveia, Beira Alta.



















