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"Farpas"

  • Foto do escritor: Ana Branco
    Ana Branco
  • 23 de out.
  • 3 min de leitura
As Farpas

“As Farpas”, nome metafórico, dado com o sentido e intenção de “espicaçar a sociedade”, foram edições mensais, publicadas entre 1871 e 1882, numa revista fundada por Ramalho Ortigão (24 de Outubro de 1836 - 27 de Setembro de 1915) e Eça de Queirós (25 de Novembro de 1845 - 16 de Agosto de 1900), quando tinham, respectivamente, 35 e 26 anos.


Foram iniciadas no mesmo ano em que se realizou as chamadas “Conferências do Casino”, em 1871, nas quais um grupo de jovens escritores e intelectuais apresentaram o seu manifesto com pretensões de revolucionar a literatura e a sociedade cultural portuguesa da época, com base nas filosofias realistas e naturalistas do escritor francês, Gustave Flaubert. Foi a censura imposta, pelas autoridades, às conferências, enquanto estas decorriam, que motivou, em grande parte, o lançamento das publicações pelos dois jovens escritores.


Decerto inspiradas nas “Les Guêpes” (As Ferroadas), do francês Alphonse Karr, “As Farpas” – sublinhadas com a legenda “O País e a Sociedade Portuguesa” – constituem um painel jornalístico da sociedade de Portugal nos finais do século XVIII, com artigos altamente críticos e irónicos a satirizar, com muito humor à mistura, múltiplos sectores da sociedade da época – da política à religião, dos costumes e hábitos, à mentalidade vigente.


“As Farpas” constituem pois um marco na literatura e na evolução cultural do país uma vez que se impuseram como um novo e inovador conceito de fazer jornalismo – o jornalismo de ideias, de crítica social e cultural.

«(...) Aproxima-te um pouco de nós, e vê. O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os carácteres corrompidos. A práctica da vida tem por única direcção a conveniência. Não há principio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia.


O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima abaixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretárias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui.


O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguer. A agiotagem explora o lucro. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. O número das escolas só por si é dramático. O professor é um empregado de eleições. A população dos campos, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinhas e de vinho, trabalhando para o imposto por meio de uma agricultura decadente, puxa uma vida miserável, sacudida pela penhora; a população ignorante, entorpecida, de toda a vitalidade humana conserva unicamente um egoísmo feroz e uma devoção automática. No entanto a intriga política alastra-se.


O país vive numa sonolência enfastiada. Apenas a devoção insciente perturba o silêncio da opinião com padre-nossos maquinais. Não é uma existência, é uma expiação. A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: o país está perdido! Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete que de norte a sul, no Estado, na economia, no moral, o país está desorganizado e pede-se conhaque! (...)»


in "Farpas", por Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão (Junho de 1871).

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