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"Movimento Perpétuo"

  • Foto do escritor: Ana Branco
    Ana Branco
  • 24 de nov.
  • 5 min de leitura
Movimento Perpétuo

A par da actividade de professor liceal, de divulgador de temas científicos e de investigador, Rómulo de Carvalho nascido a 24 de Novembro de 1906 retomou, no início da década de cinquenta, a criação poética. Como António Gedeão publicou o seu primeiro livro de poesia: "Movimento Perpétuo" (1956). A musicalização do poema «Pedra Filosofal» contribuiu para a sua popularidade junto do grande público, desde a década de setenta do século XX até aos dias de hoje.


Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida

como outra coisa qualquer,

como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso,

em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos,

que em oiro se agitam,

como estas aves que gritam

em bebedeiras de azul.


Eles não sabem que o sonho

é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho alacre e sedento,

de focinho pontiagudo,

que foça através de tudo

num perpétuo movimento.


Eles não sabem que o sonho

é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel,

arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral,

contraponto, sinfonia,

máscara graga, magia,

que é retorta de alquimista,

mapa do mundo distante,

rosa dos ventos, Infante,

caravela quinhentista,

que é cabo da Boa Esperança,

ouro, canela, marfim,

florete de espadachim,

bastidor, paço de dança,

Colombina e Arlequim,

passarola voadora,

pára-raios, locomotiva,

barco de proa festiva,

alto-forno, geradora,

cisão de átomo, radar,

ultra-som, televisão,

desembarque em foguetão

na superfície lunar.


Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida.

Que sempre que o homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança.


O poema é composto por quatro estrofes: a primeira com doze versos, a segunda com seis (sextilha), a terceira possui 24 versos e a quarta apresenta seis versos (sextilha). A maior parte dos versos possuem sete sílabas métricas (heptassílabo ou redondilha maior). As rimas são cruzadas, emparelhadas e interpoladas.


O tema do poema é o sonho, e pode ser dividido em duas partes lógicas:


- A primeira parte é constituída pelas primeiras três estrofes, em que o sonho é comparado a elementos que temos na natureza (pedra, ribeiro, pinheiros, aves, alimentos, animais…); a elementos artísticos e arquitectónicos; a elementos relacionados com a ciência; à expansão marítima e às suas descobertas e às invenções.


- A segunda parte corresponde à última estrofe, em que o sujeito poético conclui que o sonho comanda a vida, como diz o texto, e que faz avançar e evoluir o Mundo.


O sonho, neste poema, é entendido como a mola do progresso e da evolução do ser humano, o sonho é o elemento que leva o Homem a fazer avançar o Mundo e a superar-se continuamente. O sonho “é uma constante da vida”, sem ele, segundo Fernando Pessoa, o Homem é somente um “cadáver adiado que procria” (D. Sebastião, in Mensagem).


O título do poema – Pedra Filosofal – remete para a alquimia (uma substância que, segundo a lenda, se adicionava aos metais pobres para se transformarem em ouro). Assim, este título, associa o sonho humano à magia dos alquimistas, sugerindo que o sonho, qual pedra filosofal, transforma em ouro as fraquezas e as pequenas ambições humanas.


O sonho faz parte da vida dos seres humanos, é tão frequente, concreto e definido como uma pedra, um ribeiro, os pinheiros, as aves... fazem parte da Natureza. Estas comparações que surgem no início do texto sugerem que o sonho é uma coisa simples, mas, ao mesmo tempo, complexa, porque é muito difícil de definir; apontam ainda o quanto os sonhos são abstractos e subjectivos, podendo, no entanto ser transformados em algo tão concreto e definido como outra coisa qualquer.


Os sonhos podem ser “mansos” ou “sobressaltados”; estão relacionados com algo grandioso e envolvidos pela ideia da esperança constante presente na expressão “pinheiros altos”: a cor verde dos pinheiros, símbolo de esperança, poderá remeter para a eterna “juventude” ou para a renovação constante do sonho (atingido um sonho, o Homem não deve parar de sonhar, há que procurar outro sonho para concretizar), a perenidade das folhas dos pinheiros representam a importância de se ter sempre um sonho (“o sonho / é uma constante da vida”; a altura sugere a liberdade desse ideal, não há limites para o sonho, assim como o céu por onde voam as aves não apresenta limites). Os sonhos são igualmente comparados a um “bichinho (…) sedento” (metáfora) cujo focinho pontiagudo permite penetrar nos “locais” mais recônditos para satisfazer as suas necessidades, o bichinho procura água, pois tem sede, o Homem deve perseguir os seus sonhos, deve procurá-los estejam eles onde estiverem como se deles dependesse a sua sobrevivência.


O sonho faz evoluir, leva o Homem a progredir nas diversas áreas: a Arte (a pintura, a arquitectura, a música, o teatro, a dança); a Técnica e a Tecnologia (a cisão do átomo, o radar, o foguetão…); a Geografia e a História, a Indústria...


Em relação aos portugueses, o sujeito poético refere os Descobrimentos, que permitiram que um pequeno povo, avançasse “por mares nunca dantes navegados”, em pequenas naus, em perseguição do seu sonho. Este povo corajoso e aventureiro revelou novas terras, novos povos, novas civilizações ao Mundo, demonstrando coragem e espírito de aventura. “Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce", o Homem sonhou que existiam outros mundos para além do que era conhecido e sonhou que os poderia descobrir e, através da força imparável do sonho, a obra nasceu, abriram-se novos horizontes e surgiram ante os olhos de todos novos mundos, os continentes antes separados pelos Oceanos uniram-se e a terra surgiu toda, una.


Sempre que o Homem sonha, supera-se e consegue sempre atingir algo melhor do que aquilo que conhece, o sujeito poético crítica todos aqueles que não sonham, pois não sabem que o sonho comanda a vida. Sem sonho a vida não tem sentido, porque “o sonho comanda a vida”.


Numa tentativa de definir o sonho, este poema promove a sua aproximação ou mesmo identificação com diversos referentes. Para isso, serve-se preferencialmente de duas figuras de estilo:

- "[o sonho] é Cabo da Boa Esperança": Metáfora

- "como este ribeiro manso" - comparação

- "o sonho/é vinho, é espuma, é fermento": metáfora

- "como estes pinheiros altos": comparação


O efeito de analogia do poema é conseguido através da metáfora, que promove uma identificação entre termos diferentes, a partir do uso do verbo ser ("O sonho é..."), e da comparação, que promove uma associação de dois termos.


Todo o poema de uma forma geral, e em concreto a terceira estrofe, assenta na enumeração de uma gama de vocábulos das mais variadas áreas de saber que, segundo o sujeito poético, são coincidentes com o sonho. Esta referência a uma multiplicidade de nomes confere ao poema muita musicalidade e ritmo.


A anáfora existente nas três primeiras estrofes do poema ("Eles não sabem que o sonho") indica a referência a um destinatário do discurso poético (eles) e introduz uma oração integrante. A estrutura estrófica livre de normas mostra que estamos perante um poema do século XX.

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