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Não há verdade que sempre dure nem realidade que perdure

  • Foto do escritor: Ana Branco
    Ana Branco
  • 3 de jan.
  • 5 min de leitura

Atualizado: há 18 horas

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A luz, associada à ideia de verdade, realça o real que vive dela e reflete-a em tons diferentes. A realidade não é só aquela que é mostrada pela luz e que se interioriza como verdade. A verdade tem um peso maior e o seu espectro abrange quer a sombra, quer a luz. A sombra decorre da luz. É devido à existência da luz que a sombra existe, na maioria das vezes encarada no plural: as sombras. Porque de um ponto de luz, podem ser, aparentemente, vislumbradas várias sombras.


Na "Alegoria da Caverna", Platão afirma que a caverna corresponde ao mundo visível e o sol ao fogo onde a sua luz se projecta. A constatação do filósofo é uma alegoria referente à natureza humana e, mais do que isso, da sua atitude perante a cultura e a incultura, da luz contra as trevas e contra as sombras e que, muito embora se trate de uma luz em segunda-mão, não invalida que se assuma como luz principal. A caverna é o mundo em que vivemos. As sombras são o que percebemos. A verdade é a luz exterior do sol, onde está a realidade.


Dante referia-se ao paraíso como sendo detentor de uma luz tão intensa que não se podia enfrentar, e que “anula a surpresa, termina com a possibilidade da Poesia, da Liberdade, do Amor e da Felicidade”. Assim, a conceptualização da luz, enquanto parte integrante da vida, da sociedade, envereda pela lógica da sombra que, “sem destruir os segredos, a Luz os pode revelar e servir-nos de guia”. Em cada possibilidade interpretativa do mundo, é aberto um espaço contra a morte, no entanto isso faz com que se desguarneça “outra gruta escura”. Sublinhando, no entanto, que “nenhuma noite vencerá inteiramente a Luz, nenhum dia vencerá inteiramente a Escuridão”, pelo que “talvez apenas uma luz abstracta (…) nos possa trazer de novo ao real” (Pinharanda, 2007, s.p.).


Segundo Santo Agostinho, a verdade está no interior do homem. “Não queiras sair para fora; é no interior do homem que habita a verdade”. E há verdades constantes, inalteráveis, para sempre. Dois mais dois serão sempre quatro.


Nietzsche olhava para a verdade como um ponto de vista, encarando-a como ficção. Ele não define nem aceita a sua definição de verdade, porque não se pode alcançar uma certeza sobre a definição do oposto da mentira. Daí o texto do filósofo intitulado "Crepúsculo dos Ídolos, ou Como Filosofar com o Martelo" (1888).


Para René Descartes a certeza é o critério da verdade, sendo que quem está de acordo com uma determinada expressão, compromete-se com a verdade que nela está inscrita. Umberto Eco preferia as mentiras.


No "Ensaio sobre a cegueira" (1999), José Saramago utiliza inúmeras metáforas para explicar como é que as pessoas vão cegando no mundo contemporâneo, numa alegoria sobre um horror que corrói a convivência humana, colocando em contraste os deveres de cidadania (como o sentimento de responsabilidade social) e a demissão do sujeito em relação a esses deveres, ao sublinhar as atitudes de alheamento e de passividade. O livro é sobre a luz e a verdade, não obstante escolha o seu contrário para a evidenciar. Na epígrafe do romance, a partir do "Livro dos Conselhos", Saramago escolheu a frase: “se podes olhar, vê; se podes ver, repara". A visão não é apenas o acto de ver, abrange uma descodificação interpretativa assente no reparar, e na ideia de ‘olhar’, que apela à memória, contextualizando a experiência através das suas ‘ferramentas’ de detecção, identificação, ligação e compreensão das diversas situações que, por comparação, incidem no comportamento.


O conceito de luz vai muito além do fenómeno físico e do qual depende a vida (sem luz não seria possível haver vida na Terra). O nosso conhecimento do mundo, da realidade, também depende da luz e do que ela nos faz perceber. É por isso que a luz, desde que o homem tomou consciência de si (e, por consequência, dos outros), sempre assumiu a forma de metáfora para o entendimento da razão, da verdade e do bem. E do seu contrário, pela via das sombras que decorrem da luz. Razão e emoção estão numa dicotomia que colocam em perspectiva lógicas assentes na ciência pura, objectivas, portanto, mas também na poesia, na problematização, por conseguinte, necessariamente subjectivas.


Peter L. Berger e Thomas Luckmann salientarem a existência de múltiplas realidades, em que uma se apresenta como sendo a realidade por excelência: a da vida quotidiana, apelidada de realidade predominante e, por isso, admitida como sendo “a realidade". Muito embora essa constatação faça sentido, nomeadamente para se poder circunscrever o olhar para um objectivo concreto, o certo é que não existe nenhuma realidade objectiva. A atestá-lo, bastará ter em atenção a noção de que a linguagem simbólica vai para além da própria realidade e, por isso mesmo, se constitui como um dos seus principais componentes, o que lhe dá, por conseguinte, um recorte subjectivo.


O mundo dos média é um mundo construído, uma porção ínfima da realidade, devido a factores mais operacionais, como o tempo e o espaço (os média não são elásticos e lá não cabe toda a realidade), e outros de razão financeira e ideológica (que decorrem dos donos das empresas), e política (na sequência da linha editorial vigente). O facto é que os média, que deveriam difundir a verdade, difundem a ‘sua’ verdade.


Byung-Chul Han, referindo-se ao idiota como aquele que se diferencia em relação ao consenso existente na sociedade, pensando pela sua própria cabeça, salienta que o idiotismo se opõe “ao poder de dominação neoliberal, à comunicação, e à vigilância totais” (Han, 2015, p. 89). O idiota é, como tal, aquele que se rebela contra a aparente luz intensa da Google e da Igreja, que por ser ofuscante pode cegar de tanta informação, mas que é só aparente, uma vez que na sua maior parte, trata-se de mais do mesmo. Na ideia de Han, “o idiota não ‘comunica’ porque comunica com o incomunicável, em que o excesso de luz ofusca, como as trevas. Recolhe-se assim no silêncio”, sendo que o idiotismo “constrói espaços livres de silêncio nos quais é possível dizer alguma coisa que mereça realmente ser dita” (Han, 2015, p. 89).


De Platão à física de partículas, a busca pelos blocos de construção definitivos da realidade tem sido vista há muito tempo no Ocidente como uma promessa de revelar as verdades mais profundas da vida. Mas esta abordagem tem enfrentado todo o tipo de problemas.


Os filósofos chineses Huayan vêem esta procura de uma base fundamental fixa da realidade como um erro. O filósofo da ciência Nicholaos Jones utiliza a ideia Huayan de “verdade parcial” para defender que existem várias formas de conceber os fundamentos da realidade, cada uma das quais ilumina um aspecto diferente de uma verdade completa que nenhuma mente pode compreender completamente. Em vez disso, ao aprendermos a mover-nos livremente entre estas diferentes verdades parciais, podemos ter prazer na sua variedade caleidoscópica.


“As teorias metafísicas são verdades parciais misturadas com meios hábeis para apresentar essas verdades parciais a públicos com apegos diferentes”, escreve Jones.

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