“A Coragem da Verdade”
- Ana Branco

- 14 de out.
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“A Coragem da Verdade” é parte do último seminário de Michel Foucault, nascido a 15 de Outubro de 1926, ministrado no Collège de France. É a sua última meditação sobre o “dizer-a-verdade” e a prática filosófica. O excerto que partilho é sobre a Democracia.
«(…) Na crítica da parresía democrática, que vemos desenvolver-se nos textos filosóficos e políticos do século IV, trata-se na realidade da crítica da democracia, das instituições democráticas, das práticas da democracia nas suas pretensões tradicionais – tais como poderiam aparecer, por exemplo, pelo menos de forma alusiva, em Eurípedes, de serem o lugar privilegiado para a emergência do dizer-a-verdade. Atenas, cidade democrática, orgulhosa das suas instituições, pretendia ser a cidade na qual o direito de falar, de tomar a palavra, de dizer a verdade, e a possibilidade de aceitar a coragem desse dizer-a-verdade eram efectivamente realizados melhor que noutros lugares. É essa pretensão, da democracia em geral e da democracia ateniense (em particular), que é questionada. Os valores parecem reverter-se e a democracia aparece, ao contrário, como o lugar em que a parresía (o dizer-a-verdade, o direito de dar a opinião e a coragem de se opor à dos outros) vai se tornar cada vez mais impossível ou, em todo o caso, perigosa. Essa crítica contra a pretensão das instituições democráticas de ser o lugar da parresía assume dois aspectos.
Primeiramente, na democracia a parresía é perigosa para a cidade porque é a liberdade, dada a todos e qualquer um, de tomar a palavra. De facto, na democracia, a liberdade de tomar a palavra não é mais exercida como privilégio estatuário dos que são capazes, por seu nascimento, seu estatuto, sua posição, de dizer a verdade e de falar utilmente na cidade. Na democracia, a parresía é uma latitude (concedida) a cada um de dizer, o que é conforme à sua vontade particular, o que lhe permite satisfazer os seus interesses ou as suas paixões. A democracia, por conseguinte, não é o lugar em que a parresía se vai exercer como privilégio-dever. A democracia é o lugar em que a parresía se vai exercer como latitude, para cada um e para todos, de dizer qualquer coisa, isto é, o que bem lhe aprouver. E é assim que Platão, na “República” (Livro), evoca essa cidade repleta de liberdade e de fala franca (eleuthería e parresía), a cidade variada e heteróclita, a cidade sem unidade na qual cada um dá a sua opinião, segue as suas próprias decisões e governa-se como quer. Há, nessa cidade, tantos políteiai (constituições, governos) quantos são os indivíduos. É assim também que Isócrates, no início do “Discurso sobre a paz” (parágrafo 13), evoca os oradores que os atenienses escutam com complacência. E quais são essas pessoas que se levantam, que tomam a palavra, dão a sua opinião e são ouvidas? Pois bem, essas pessoas são os bêbados, são pessoas que não estão na posse do seu espírito (os que não são sensatos), são igualmente os que dividem entre si a fortuna pública e o tesouro do Estado. Assim, nessa liberdade parresiástica, entendida como latitude dada a todos e cada um de falar (bons e maus oradores, homens interessados ou homens devotados à cidade), discurso verdadeiro e discurso falso, opiniões úteis e opiniões nefastas ou nocivas, tudo isso se justapõe, se entrelaça no jogo da democracia. Vemos portanto que, na democracia, a parresía é um perigo para a cidade.
O segundo aspecto que inquieta, a propósito da parresía democrática ou da democracia como lugar supostamente privilegiado para a parresía, é que na democracia a parresía é perigosa, não só para a própria cidade como para o indivíduo que tenta exercê-la. E nesse momento, a parresía é encarada sob um outro aspecto. No primeiro perigo, via-se a parresía revelar-se como a latitude dada a cada um para dizer qualquer coisa. Agora, a parresía aparece como perigosa na medida em que requer, da parte de quem quer fazer uso dela, uma coragem que corre o risco, numa democracia, de não ser apreciada. De facto, entre todos os oradores que se enfrentavam, nessa barafunda de que Platão fala (a imagem do barco no livro VI República), nessa barafunda de todos os oradores que se enfrentam, que tentam seduzir o povo e se apossar do leme, quais são os que serão escutados, quais são os que serão aprovados, seguidos e amados? Os que agradam, os que dizem o que o povo deseja, os que o lisonjeiam. E os outros, ao contrário, os que dizem ou tentam dizer o que é verdadeiro e bom, mas não o agradam, estes não serão ouvidos. Pior, eles suscitarão reacções negativas, irritarão, encolerizarão. E o seu discurso verdadeiro, os exporá à vingança ou à punição.(…)»



















