"Homens em Tempos Sombrios”
- Ana Branco

- 4 de dez.
- 3 min de leitura
Escrito durante um período de doze anos, no impulso da ocasião ou da oportunidade, «Homens em Tempos Sombrios» é uma coleção de ensaios e artigos que trata principalmente de pessoas - como viveram as suas vidas, como se moveram no mundo e como foram afetadas pelo tempo histórico. Partilho um pequeno excerto do ensaio sobre Lessing - um discurso proferido por Hannah Arendt quando aceitou receber o Prémio Lessing.
«(...) Nos duzentos anos que nos separam da vida de Lessing, muita coisa mudou a esse respeito, mas pouco mudou para melhor. Os “pilares das verdades mais bem conhecidas” (para manter a sua metáfora), que naquela época tremiam, hoje estão despedaçados; não mais precisamos da crítica nem de homens sábios que as façam tremer.
Precisamos apenas olhar em volta para ver que nos encontramos em meio a um verdadeiro monte de entulhos daqueles pilares. Agora, num certo sentido, isso poderia ser uma vantagem, promovendo um novo tipo de pensamento que não necessita de pilares ou arrimos, padrões ou tradições, para se mover livre e sem muletas por terrenos desconhecidos. Mas com o mundo tal como está fica difícil aproveitar essa vantagem. Pois há muito tempo se tornou evidente que os pilares das verdades também eram os pilares da ordem política, e que o mundo (em oposição às pessoas que nele habitam e se movem livremente) precisa de tais pilares para garantir a continuidade e permanência, sem as quais não pode oferecer aos homens mortais o lar relativamente seguro, relativamente imperecível de que necessitam.
Certamente, a própria humanidade do homem perde a sua vitalidade na medida em que ele se abstém de pensar e deposita a sua confiança em velhas ou mesmo novas verdades, lançando-as como se fossem moedas com que se avaliassem todas as experiências. E, no entanto, se isso é verdadeiro para o homem, não é verdadeiro para o mundo.
O mundo torna-se inumano, inóspito para as necessidades humanas — que são as necessidades de mortais —, quando violentamente lançado num movimento onde não existe mais nenhuma espécie de permanência. É por isso que, desde o grande fracasso da Revolução Francesa, as pessoas vêm, repetidamente, reerguendo os velhos pilares que haviam sido então derrubados, apenas para vê-los, novamente, oscilar de início e, a seguir, ruir, uma vez mais.
Os erros mais terríveis substituíram as “verdades mais bem conhecidas”, e o erro dessas doutrinas não constitui nenhuma prova, nenhum novo pilar para as velhas verdades. No âmbito político, a restauração nunca é um substituto para uma nova fundação, mas será, no máximo, uma medida de emergência que se torna inevitável quando o acto de fundação, chamado revolução, fracassa. Mas é igualmente inevitável que, numa tal constelação, principalmente quando se estende por períodos tão longos de tempo, a desconfiança das pessoas em relação ao mundo e a todos os aspectos do âmbito público deva crescer constantemente. Pois a fragilidade desses esteios da ordem pública, repetidamente restaurados, está fadada a tornar-se cada vez mais evidente após cada colapso, de modo que, no final, a ordem pública baseia-se na sustentação, pelas pessoas, da auto-evidência, justamente, daquelas “verdades mais bem conhecidas” em que, intimamente, quase ninguém acredita mais.
II
A história conhece muitos períodos de tempos sombrios, em que o âmbito público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa à política além de que mostre a devida consideração pelos seus interesses vitais e liberdade pessoal. Os que viveram em tempos tais, e neles se formaram, provavelmente sempre se inclinaram a desprezar o mundo e o âmbito público, a ignorá-los o máximo possível ou mesmo a ultrapassá-los e, por assim dizer, procurar por trás deles — como se o mundo fosse apenas uma fachada por trás da qual as pessoas se pudessem esconder —, chegar a entendimentos mútuos com os seus companheiros humanos, sem consideração pelo mundo que se encontra entre eles. (...)»



















