“Ideologia de género”
- Ana Branco

- 10 de mar. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 1 de dez.
O termo “género” não é apenas uma palavra, uma representação do seu referente. O termo “género” é a representação de uma relação, a relação de pertencer a uma classe, um grupo, uma categoria. Género é a representação de uma relação. O género constrói uma relação entre uma entidade e outras entidades previamente constituídas como uma classe, uma relação de pertencer. Género não representa um indivíduo, um Ser Humano. Género representa uma relação social; representa um indivíduo, um ser humano por meio de uma classe.
Segundo Teresa de Lauretis, as concepções de masculino e feminino, nas quais todos os seres humanos são classificados, formam em cada cultura, um sistema de género, um sistema simbólico ou um sistema de significações que relaciona o sexo a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias sociais. Embora os significados possam variar de uma cultura para outra, qualquer sistema de sexo-género está sempre intimamente interligado a factores políticos e económicos em cada sociedade. Sob essa óptica, a construção cultural do sexo em género e a assimetria que caracteriza todos os sistemas de género através de diferentes culturas são entendidas como sendo sistematicamente ligadas à organização da desigualdade social.
A expressão “ideologia de género” foi criada entre meados da década de 1990 e início dos anos 2000, no âmbito do Conselho Pontifício para a Família, com o objectivo de rotular e distorcer o que se produzia no campo dos estudos de género e espalhou-se pelo mundo com significados distintos. O termo “ideologia de género" é usado, essencialmente, com um sentido depreciativo, para contrariar o que se considera “a desnaturalização da ordem sexual”, provavelmente beneficiando do crescente interesse e mobilização popular, política e religiosa. Como a expressão adopta usos distintos, dependendo de quem a utiliza e da ideologia que defende, é preciso saber que o significado do termo, anteriormente cunhado nas ciências sociais, era compreendido como uma forma de nomear que a sociedade é regida por ideologias de género, sendo que “tais ideologias subjugam mulheres aos homens, transgéneros às/aos cisgéneros; homossexuais e bissexuais às/aos heterossexuais. Tratam-se das ideologias do machismo e da LGBTfobia”. Em Portugal, o marco que se identifica para a utilização mais corrente e frequente da expressão, designadamente pelos meios de comunicação, é um debate sobre a educação como mecanismo a favor de uma “ideologia de género”, intensificado desde 2017. A acção, mais específica, que assinala o uso mais frequente do termo associa-o à educação e, em específico, ao ensino público.
Os sentidos dados ao conceito de género e ao termo “ideologia de género”, principalmente os sentidos que estão presentes em narrativas que sugerem que género e/ou os estudos de género veiculam e procuram impor uma ideologia apresentada com uma aparência científica, são sustentadas por sectores conservadores que compreendem sexo e sexualidade como questões que dizem respeito a uma ordem transcendente, pré-social e imutável, estimulando abordagens naturalistas e essencialistas. A diferença entre os sexos, marcada pelas suas características reprodutivas, é assumida como base para outras diferenças relacionadas a interesses, personalidade, intelecto e aspectos físicos, como força, velocidade, habilidades, desejo sexual, entre outras.
No final do século XIX e a na primeira metade do XX, sexo e género, eram determinados como semelhantes dentro das lógicas científicas e sociais hegemónicas, havendo, portanto, a associação natural entre macho/homem/masculino e fêmea/mulher/feminino, ainda que género como conceito não fosse nomeado desta forma e ainda que as experiências da sexualidade transgressoras a estas associações sempre tivessem existido. As hierarquias e visões dominantes de género eram explicadas por meio de “diferenças naturais” e não colocavam em causa as relações de poder que instalam uma lógica de dominância social que privilegia homens, sobretudo homens brancos e heterossexuais, assegurando estes marcadores sociais como as referências, tanto para conceber o que significa ser universalmente humano, quanto para generalizar padrões de género.
Os anos 60 e 70 do século XX marcaram a segunda fase da evolução do conceito de género, onde este passou a ser compreendido como diferente do sexo e também como uma construção social, assumindo uma posição variável e questionando o privilégio estrutural dos homens; as diferenças entre homens e mulheres na participação da vida política e social, na ascensão económica e na vitimização; a criação e hierarquização dos seus papéis e expectativas sociais etc. Há, portanto, a tentativa de evidenciar a construção social dos modos de estar e de se ser em sociedade e desnaturalizar disparidades entre o que é permitido e esperado do masculino e do feminino, diferenciando-as do sexo, contudo ainda marcada por uma visão binária da sexualidade.
No final dos anos 80 e princípio dos 90 do século XX, assume-se, ainda mais, que é complexa a relação entre o biológico e o social, acentuando que género não se refere a um facto ou verdade sobre os sujeitos, nem a uma estrutura preexistente, mas a um fenómeno, produzido e reproduzido. “Género” é, então, apresentado como uma categoria para a análise de desigualdades descolando-a de argumentos que sustentam que ser homem e ser mulher são experiências fixadas pela natureza e pelos seus atributos decorrentes desta dicotomia, além de incorporar o carácter fluido do género, das identidades e orientações sexuais e questionar as normativas heterossexuais.
Actualmente, o entendimento da organização social abre espaço para perceber o ”género” como uma estrutura social multidimensional que diz respeito à identidade, à sexualidade, à divisão sexual do trabalho, ao poder, às questões económicas e políticas globais. O papel do “género” nas relações sociais das sociedades é anterior à existência do termo “ideologia de género” em qualquer campo de conhecimento e, como tal, é preciso compreender os significados atribuídos ao termo compreendendo que esse termo não cria o que nomeia, e sim agrupa uma série de realidades políticas-sociais pré-existentes e depende do lugar do emissor do discurso.
Em Portugal, para os discursos conservadores a “ideologia de género” é percebida como um projecto totalitário de viés político-partidário, com uma agenda uníssona, que questiona a ordem social e se manifesta através de teóricas/os “do género” e dos movimentos feministas e LGBTI+. Um projecto que terá uma intenção de transformação da ordem social, que altera as bases em que a sociedade se assenta, onde a família possui uma definição universal, naturalizada e baseada em valores morais cristãos, portanto, monogâmica, cisgénera e heterossexual. Em diversos países, lideranças consideradas populistas e de extrema-direita trouxeram para o centro da sua agenda política uma cruzada contra a “ideologia de género”, onde há a “defesa da família e de uma ordem sexual com base em valores cristãos”.
As narrativas sobre igualdade de género e diversidade sexual acontecem no campo democrático e as campanhas contra elas colaboram para a erosão das democracias na medida em que comprometem valores e requisitos institucionais fundamentais como pluralidade, laicidade, protecção às minorias, direito à livre expressão e à oposição.



















