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"O Estrangeiro"

  • Foto do escritor: Ana Branco
    Ana Branco
  • 7 de nov. de 2024
  • 6 min de leitura

Atualizado: 20 de nov.

O Estrangeiro

O conflito existencial, do protagonista Mersault, no livro «O Estrangeiro», é parte da filosofia do absurdo de Albert Camus, tratada nos seus ensaios «O mito de Sísifo» (1942) e «O homem revoltado» (1951). O homem absurdo afirma-se na revolta, na luta que pressupõe a total ausência de esperança (que nada tem a ver com o desespero), a recusa contínua (não confundível com a renúncia) e a insatisfação consciente (que não se associa à inquietude juvenil).


«O Estrangeiro» é uma narrativa simples e directa: a vida de um homem, o momento em que ele se torna assassino e o seu julgamento. Ocultada por trás desta narrativa, aparentemente linear, encontra-se uma incompreendida teoria ética. N’«O mito de Sísifo», Camus defende que a moralidade não precisa de regras; o homem absurdo só pode admitir uma moralidade: a que não se distingue de Deus e a que é ditada pela realidade de que o homem vive precisamente fora desse Deus. Com isso, Camus entende que qualquer outra moral (ou imoralidade) busca justificativas onde não há o que justificar:


“O absurdo não liberta: liga. Não autoriza todos os actos. Tudo é permitido não significa que nada é proibido. O absurdo apenas devolve às consequências dos seus actos a equivalência delas. Ele não recomenda o crime. Seria pueril, mas restitui ao remorso a sua inutilidade”.


Nasce, assim, a interpretação imperativa da ética camusiana. Ao aceitar como certeza a sua absurdidade, o homem absurdo torna-se imperativo. Ele sacrificará as demais crenças para pautar o seu comportamento de acordo com a sua verdade. O homem absurdo é o homem consciente das suas acções, preparado a tomá-las à risca e a responsabilizar-se pelas suas consequências. Mersault é o homem genuinamente honesto, disposto a levar adiante as suas acções, com todas as suas consequências. Ele tem por características a coragem para viver e satisfazer-se neste mundo absurdo, e o raciocínio, que aponta os seus limites por decisões livres e conscientes, tal como deve ser realizado o acto moral.


O homem absurdo é aquele que compreendeu a situação paradoxal da condição humana. Ele é um homem consciente, pois reconhece o seu papel de revolta frente às injustiças e opressões; ele compromete-se a lutar contra a servidão, a mentira e o terror; ele busca a longa cumplicidade dos homens em luta com o próprio destino. O homem absurdo aceita a responsabilidade frente à verdade que leva consigo: a da revolta consciente. A sua revolta é moralizante no sentido de que prega incessantemente o movimento da contestação. Para Camus, quanto mais a revolta tem consciência de reivindicar um limite justo, mais inflexível se mostra. O revoltado exige, sem dúvida, certa liberdade para si próprio, mas em nenhum caso, se for consequente, o direito de destruir o ser e a liberdade alheia. A liberdade que reclama reivindica-a para todos; a que recusa, proíbe-a a toda gente. Não se trata apenas do escravo contra o senhor, mas também do homem contra o mundo do senhor e do escravo.


Camus pretende uma revolução realista que não parta de um ideal para mudar a sociedade, mas do pressuposto de terror e violência reais da sociedade. Segundo ele, a revolução do século XX pretende partir do absoluto para moldar a realidade; a revolta, por sua vez, apoia-se no real a fim de encaminhar um combate perpétuo em direcção à verdade. A primeira tenta realizar-se de cima para baixo; a segunda, de baixo para cima. A busca pela verdade torna-se, na continuidade das suas obras, uma luta imperativa de todos. Apesar de Camus admitir a possibilidade ética de se praticar o mal, tal acto deve ser cometido sem a renúncia da sua revolta, ou seja, na plena consciência do seu fim. Mersault foge à regra: comete um assassinato sem qualquer explicação racional.


Ao pautar a sua vida em torno de promessas de desprendimento, e sem regras sociais ou de consulta, Mersault prova ser, de maneira adversa, incrivelmente fiel àquilo em que acredita. Ele manteve-se tão fiel ao seu absurdo, à sua verdade, a ponto de contrariar qualquer ditame social e de repelir a amizade e o amor. O problema é lógico: existe uma impossibilidade de alegar-se livre de qualquer convenção, pois esta em si prova-se um preceito; torna-se, por sua vez, um preceito mais rígido que os demais, exactamente por ter que combatê-los. Camus demonstra, portanto, que a busca por uma crença é comum aos homens independente do caminho que escolham para alcançá-la: o metafísico, o natural ou o racional.


A busca por uma solução ética foi uma das grandes preocupações de Camus. Profundamente influenciado pela Segunda Guerra Mundial e o pós-guerra, ele procurou achar alguma base, que não o homem, para balancear a brutalidade do nazismo e do stalinismo. Confrontado com um dilema, Camus não quer recorrer à história, pois a história resultou num reino de terror; ele quer encontrar valores absolutos independentes do tempo, pois isso constituiria o “velho deus” negador da criatividade humana. Desafiar a história é aprisionar o homem aos eventos históricos; desafiar qualquer valor absoluto, aparentemente, aprisiona o homem a um poder superior. Camus acredita que o homem revoltado descobre a origem da sua rebelião na natureza, mas não prega princípios abstractos e nem que estes sempre existiram. Ele defende que alguns princípios realmente existem e, ao longo de toda a história, eles negam a servidão, a mentira e o terror.


«O Estrangeiro» é dividido em duas partes bem distintas. A primeira parte familiariza o leitor com o personagem principal e aproxima-o da sua lógica; é por ela que Camus fornece ao leitor uma base referencial para que venha a julgar o seu personagem na segunda parte do livro. Após os cinco tiros deferidos contra o árabe, Mersault encontra-se na prisão, a aguardar julgamento.


Os factos que se seguem são denunciadores de uma justiça teatral e descomprometida com os factos, evidenciando a crítica de Camus ao absurdo institucional da sociedade. Ao descrever o funcionamento da justiça no decorrer do processo de Mersault, Camus mostra como as instituições sociais, criadas com o intuito de buscar a verdade e a justiça, se tornaram, na verdade, obscuras e contraditórias com o desejo humano por clareza. Tornaram-se uma parte não-humana do absurdo. Camus compara a paródia do funcionamento absurdo das instituições sociais com o, não menos absurdo, funcionamento do acaso.


Ao criar uma cumplicidade entre o leitor e Mersault, na primeira parte do livro, Camus consegue fazer com que simpatizemos com o grande assassino da sua história. No julgamento, não se sabe quem é culpado e quem é inocente.


O leitor é cúmplice da racionalidade de Mersault, torna-se testemunha da sua sanidade e reluta em aceitar a sua condenação. Quem é o real oprimido? A sociedade ofendida pelo delito ou o incompreendido, julgado pela sua diferença? O leitor é levado, através da narrativa, a sentir a injustiça deferida contra o assassino. Camus denuncia, desta forma, o descomprometimento moral do homem.


Escrito numa época turbulenta, «O Estrangeiro» permanece como prova real de que esta fragilidade moral ainda é característica nos dias de hoje. “Eis a imagem deste processo. Tudo é verdade e nada é verdade”. Esta frase, da defesa de Mersault, parte para uma nova crítica de Camus: a opressão pelas instituições jurídicas – o julgamento como evento social, o descomprometimento da justiça com os factos e a sua preocupação em nomear e eliminar “inimigos” para se fortalecer. Ao mesmo tempo denuncia, pelo exemplo extremo de Mersault, a justiça opressora da individualidade e da criatividade do homem. Depreende-se do julgamento o questionamento da análise do crime: está a julgar-se o facto ou o autor do facto? Qual destes dois deve ter primazia? A justiça tornou-se obscura e imprecisa, agravante do absurdo a que está condenado o homem.


Por um lado, é uma crítica à sociedade no sentido de que ela é incapaz de respeitar a individualidade. Por outro, critica um homem que é incapaz de adaptar-se à vida social. Existe inflexibilidade de ambos os lados. Uma sociedade opressora e um homem opressor. É o confronto absurdo – entre uma sociedade em que não existe espaço para quem pense diferente e um homem em cuja vida não há espaço para a sociedade. Uma sociedade moralmente opressora e um homem que segue a sua própria moral. Não existiria possível conciliação, pois cada qual está cego pela própria verdade.

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