Pensador original
- Ana Branco

- 12 de fev. de 2024
- 2 min de leitura
«Já você, outro dia, se revoltou perante o meu prazer de embarcar, embarcar sempre, acreditando cada vez menos nos portos de chegada; você, para lutar, precisa de ter a certeza da vitória. Bem sei: só vence quem tem fé, e ai de quem vai desanimado para os combates, e nem sequer acredita que se possa ganhar…
Já ouvi tudo isso e tentei aprendê-lo bem e sei que, naturalmente, vocês todos têm razão. No entanto, continuo a suplicar aos deuses, a ter como mais firme dentro em mim a aspiração de que um dia atinja o heroísmo de me atirar a todas as batalhas em que não haja esperança de vitória. Ser um homem de ciência, por exemplo; construtivo e céptico. Cheio de dúvidas metódicas e de entusiasmo.
Não me tentam nada as estradas que vão de um ponto a outro, de que sabemos à partida, a quilometragem e a direcção; tentam-me as estradas que não vão dar a nenhum ponto. E não larguei ainda porque não sou bastante forte para essa vida difícil.
Admiro muito os cristãos que iam para o circo e se deixavam torturar, despedaçar, devorar pela sua causa; admiro imenso os homens que uma chama de fé abrasava e transformava em heróis. Mas no mais íntimo do meu coração reservo um lugar para o que talvez tenha estado entre eles e sem fé; espero que um dia um arqueólogo descubra um papiro com o nome e a história desse herói. Um papiro do futuro, porque não creio que até aqui a humanidade tenha produzido flor tão rara.»
in "Filosofia enquanto Poesia"
Agostinho da Silva é uma das figuras cimeiras do século XX português. Pensador original, escritor singular, divulgador infatigável, orador prodigioso, didacta inovador, deixou-nos uma obra monumental em múltiplos domínios do saber e bem assim o legado exemplar de uma vida cívica dedicada, destemida e despojada, sempre pautada pelos valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade.


















