"Sobre a Liberdade"
- Ana Branco

- 19 de mai. de 2024
- 6 min de leitura
Todas as rebeliões se fizeram em nome da felicidade mas, uma vez triunfantes, converteram-se, por norma, no seu oposto sem que os heróis deixassem por isso de se afirmar convictos de continuar a agir tendo por única motivação a felicidade comum, mesmo quando recorreram ao terror e chacinaram milhões de adversários.
Por outro lado, os indivíduos, cuja espontaneidade natural aparentemente os tornaria rebeldes, experimentam amiúde a tentação de se entregar a um qualquer inquisidor, grande ou pequeno, que os alivie do fardo que é governarem-se a si mesmos, e enfraquecem, numa alucinação de felicidade.
Será possível ser feliz sem a tranquilidade que o ser-se livre impede?
Ou a felicidade não reside senão na ilusão da liberdade que os inquisidores prometem e a que chamam de servidão voluntária?
O liberalismo, através de Benjamin Constant, já tentara responder a esta mesma questão, pondo em evidência a necessidade de resguardar a liberdade individual, face ao império da "vontade geral" encarnada no poder do Estado. Contra aquilo que Rousseau ensinara, o facto de uma comunidade obrigar cada um dos seus elementos a ser livre, isto é, a sobrepor a condição de "cidadão" aos seus interesses particulares, afigura-se a um olhar liberal como uma forma de despotismo em tudo igual a qualquer outra. Ser livre, para Constant, não implica tanto a participação nas decisões que se tomam na esfera pública, como o desfrutar de independência e não ser incomodado na esfera privada.
Ao ler "Sobre a Liberdade", a mais conhecida obra de John Stuart Mill, é quase impossível não evocar esta equação, estabelecida por Constant, entre liberdade e felicidade. Mill começa por analisar a evolução do conceito de liberdade ao longo da história. Os governantes exerciam o poder sem se preocuparem com os governados, pois viam-se como melhores, e/ou mais preparados, que a restante população, que vivia sem opinar, por exemplo, sobre questões políticas.
A “autoridade” ou a “supremacia” dos governantes não era contestada, pois nem se aventuravam a desejar contestá-la. Diante disso, Mill dá exemplos de manifestações de liberdade, como a dos “patriotas” que buscavam “pôr limites ao poder” e o “estabelecimento de freios constitucionais”, que era quando uma representação popular devia estar presente nas decisões políticas mais importantes.
Depois, com a ideia de democracia, as pessoas pensaram que poderiam limitar o poder em si, pois os governantes seriam substituídos em intervalos de tempo pré-estabelecidos, atendendo assim à vontade ou interesses do povo - princípio da utilidade, pois a democracia só tem sentido se atender ao bem-estar comum. Mas, um “governo popular” pode ser só um “sonho” e o povo pode ser manipulado por “usurpadores”, fazendo com que seja posta em prática não a vontade de toda a sociedade, mas a de alguns ou da maioria activa. Assim, a democracia, hoje espalhada em grande parte pelo mundo, está sujeita à disfuncionalidade, críticas e erros. Como afirma o autor: “o sucesso revela defeitos e fraquezas que o insucesso poderia ter ocultado à observação”.
Sobre a democracia, o autor comenta o significado de “vontade do povo”, que pode ser interpretado apenas como a vontade de uma maioria activa (um partido político, por exemplo), ou seja, não atende necessariamente a todos, tratando-se de um caso de “abuso de poder”, onde uns procuram “oprimir” os outros - Mill denomina-o de “tirania do maior número” e também de “tirania da opinião” - a qual seria uma tendência da sociedade em impor as suas ideias para que não surja nenhuma opinião individual que não esteja em sintonia com suas metas.
Mill afirma:
“Há um limite à legítima interferência da opinião colectiva com a independência individual. E achar esse limite é indispensável tanto a uma boa condição dos negócios humanos como à protecção contra o despotismo político”.
Para Mill, não existe governo bom meramente pelo facto de estar em “inteira harmonia com o povo”, pois pode haver um governo “nocivo” mesmo “quando exercido de acordo com a opinião pública”, dado que ela pode trocar a verdade pelo erro e vice-versa. É necessário que haja sempre uma discussão a respeito dos problemas para que o homem busque as melhores decisões, pois do facto de “todos os homens menos um” ter certa opinião não significa que este esteja errado. O mesmo vale no caso da minoria frente à maioria do povo. Além disso, segundo Mill, é um “mal específico”, para as “gerações presentes” e para a “posteridade”, a acção de “impedir a expressão de uma opinião”, pois ela inviabiliza a “oportunidade de trocar o erro pela verdade”, quando a “opinião é certa”, ou “a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade”, quando a opinião é “errónea”.
Neste sentido, é muito importante o exercício do senso crítico, pois o mesmo faz-nos repensar as nossas opiniões, compará-las com outras e fundamentá-las. O autor comenta que nenhum sábio adquiriu sabedoria de outra forma. Além disso, depois que uma opinião é formada, ainda é necessário colocá-la em prática. Uma opinião pode ter diversas utilidades. Para Mill, “a utilidade de uma opinião é ela própria matéria de opinião: tão disputável, tão aberta a debate, exigindo tanto debate, como a própria opinião”. Com isto, surge também a relação da utilidade e da verdade, pois nem sempre uma afirmação para ser útil precisa ser verdadeira (no sentido individual e egoísta: afinal, ela pode ser útil para mim, mas prejudicar outro alguém, quando se trata de uma mentira); mas, sendo ela verdadeira, por si só já é útil.
Para o autor, para que haja o bem-estar humano é necessário que as pessoas não se atenham apenas a uma opinião, por exemplo, acerca de assuntos religiosos, morais e políticos, mas sim busquem ouvir todas as partes e procurem a possível parcela de verdade contida em cada uma delas. Para Mill, “raramente, ou nunca”, uma opinião é a “verdade inteira”, isto é, tem apenas parte da verdade; com isso, assumir apenas uma opinião seria negar as possíveis outras partes da verdade contidas em outras opiniões.
Para Mill, a liberdade de cada indivíduo deve ser assegurada, a fim de que todos possam expressar as suas opiniões, mas esta liberdade envolve limites, pois não pode lesar os mesmos direitos à liberdade de opinião de outras pessoas. A subjectividade individual deve ser reconhecida, apesar dos possíveis modos comuns de pensamento. A pessoa tem o direito a ter uma opinião contrária à maioria, mesmo que a manifestação desta opinião pessoal possa gerar conflitos. Embora a espontaneidade não seja vista com bons olhos pela “maioria dos reformadores sociais e morais” - por a consideram perigosa -, é necessária para a própria formação do pensamento colectivo, segundo Mill. É necessário estimular e cultivar a individualidade, pois tendo mais valor para o indivíduo, acaba tendo mais valor para toda a sociedade.
O autor dá o exemplo das pessoas que a partir das suas concepções individuais assumiram atitudes e tomaram posições diferentes da grande maioria, e que por isso foram excluídas e rotuladas de “extravagantes e excêntricas” pela opinião comum. Mas, segundo Mill, para que haja desenvolvimento humano e progresso é necessário que haja tal individualidade e, assim, a respectiva liberdade de expressão.
Até onde vai a liberdade do indivíduo em relação à sociedade? Onde começa a autoridade da sociedade sobre o indivíduo?
Conforme Mill, o indivíduo é livre até que sua liberdade interfira na liberdade de outro (ou seja, ela não pode ser nociva). A liberdade de expressão e de opinião deve servir para o bem-estar comum (princípio da utilidade). Quando a liberdade não fere a de outros, deve ser assegurada por lei, quando causa danos ao bem comum, então, deve ser limitada pela sociedade ou pelo Estado.
Mas, o mesmo pode ser dito com relação à liberdade de imprensa? Até que ponto a liberdade de imprensa interfere na liberdade do indivíduo? Será que cabe ao Estado ou à sociedade intervir na liberdade de expressão e/ou de imprensa? Também na questão da liberdade de propaganda, por exemplo sobre as bebidas alcoólicas e o tabaco, ou no que se pode ou não comprar? Sim, essas são questões que podem exigir distintas interferências do Estado ou da sociedade.
Para Mill, deve-se ter cuidado para não violar a liberdade individual, sobretudo na esfera privada, mas, quando essa liberdade se torna pública, afectando os outros indivíduos, o Estado deve exercer um “controle vigilante”.
Mill afirma que “o valor de um Estado, afinal de contas, é o valor dos indivíduos que o constituem. O mal começa quando os governantes trocam os interesses da sociedade pelos seus."



















