Uma virtude difícil
- Ana Branco

- 21 de nov.
- 2 min de leitura
Voltaire publicou o “Tratado sobre a tolerância” em 1763 depois da morte de Jean Calas, injustamente acusado e executado a 10 de Março de 1762 pela morte do seu filho, que se havia convertido ao catolicismo. Se, este tratado, é um dos escritos mais significativos do combate ao conservadorismo mais radical e ao espírito de intolerância religiosa que lhe anda associado, ele continua actual.
«(…) O direito humano não pode ser fundamentado em nenhum caso senão sobre esse direito da natureza; e o grande princípio, o princípio universal de um e do outro, é o mesmo em toda a terra: “Não faças aos outros o que não queres que te façam”. Ora, não se percebe como, segundo esse princípio, um homem poderia dizer a outro: “Crê no que eu creio e não no que não podes crer; caso contrário, morrerás”. (…)»
Voltaire dirige o seu combate contra formas concretas de exercício do poder judicial e contra a promiscuidade entre a ideologia e os mecanismos da justiça e defende que se o ser humano é por natureza intolerante, essa tendência deve ser contrariada. Não tem sido. Muito pelo contrário. Somos cada vez mais intolerantes. A intolerância individual reflecte-se nos governos do mundo, no exercício do poder, na justiça ambicionada e nas ideologias, cada vez mais intolerantes, a que aderimos. A tolerância e a intolerância dizem respeito a cada um de nós, como forma de nos vermos a nós mesmos e aos outros. Antes de ser combatida no espaço social que habitamos, a intolerância tem de ser combatida na nossa mente.
A atitude ou prática de tolerar encontra-se a meio caminho entre a convicção e o repúdio, entre aquilo que é moralmente verdadeiro e aquilo que é inaceitável. É uma virtude difícil. Tolerar é difícil porque os limites daquilo que é socialmente aceitável nos parecem permanentemente contestáveis. Tolerar significa lidar com pessoas que querem transformar a sociedade em algo profundamente desconfortável para nós. Se por democrático entendemos um regime político no qual todos os cidadãos (mas não necessariamente todas as pessoas) contam com oportunidades equitativas (mas não necessariamente iguais) de influenciar efectivamente os rumos da sociedade por meio do autogoverno, então os desacordos morais acerca dos valores últimos da vida social são inevitáveis.
A tolerância é uma virtude constitutiva de uma sociedade democrática. A possibilidade de separarmos, de um lado, as nossas convicções morais e, de outro, o uso apropriado da coerção pública supõe como condição normal da vida social a convivência entre concepções de bem contraditórias entre si. Isto é, tolerância e pluralismo moral são conceitos indissociáveis. Qualquer conjunto de instituições políticas é inviável quando nos recusamos a aceitar regras mínimas de tolerância mútua. Tolerância implica, de algum modo, a autorrestrição pessoal contra a tentação de nos valermos da coerção colectiva para fazer da sociedade um reflexo directo das nossas concepções de bem.



















